quinta-feira, 25 de agosto de 2016

VERONICA ROTH - DIVERGENTE



Numa Chicago futurista, a sociedade se divide em 5 facções: Abnegação, Amizade, Audácia, Franqueza e Erudição e não pertencer a nenhuma facção é como ser invisível.
Beatrice cresceu na Abnegação, mas o teste de aptidão por que passam todos os jovens aos 16 anos, numa grande cerimônia de iniciação que determina a que grupo querem se unir para passar o resto de suas vidas, revela que ela é, na verdade, uma divergente, não respondendo às simulações conforme o previsto. A jovem deve então decidir entre ficar com sua família ou ser quem ela realmente é. E acaba fazendo uma escolha que surpreende a todos, inclusive a ela mesma, e que terá desdobramentos sobre sua vida, seu coração e até mesmo sobre a sociedade supostamente ideal em que vive.(SUBMARINO)
PRIMEIRO CAPÍTULO (clique em mais informações)



Primeiro Capítulo
Há um único espelho em minha casa. Fica atrás de um painel corrediço no corredor do andar de cima. Nossa facção per- mite que eu fique diante dele no segundo dia do mês, a cada três meses, no dia em que minha mãe corta meu cabelo.
Sento-me em um banco e minha mãe permanece em pé atrás de mim com a tesoura, aparando. Os fios caem no chão, formando um anel loiro e sem graça.
Ao terminar, ela afasta os cabelos do meu rosto e os amarra em um nó. Reparo em como parece calma e em como está concentrada. Ela tem muita experiência na arte de perder-se em pensamentos. Não posso dizer o mesmo de mim.
Espio minha imagem no espelho quando ela não está prestando atenção, não por vaidade, mas por curiosi- dade. Um rosto pode mudar muito em três meses. No meu reflexo, vejo um rosto estreito, olhos grandes e redondos e um longo e delgado nariz. Ainda pareço uma criança, ape- sar de ter completado dezesseis anos em algum momento dos últimos meses. As outras facções celebram aniversá- rios, mas nós, não. Seria um ato de autocomplacência.
– Pronto – diz ela, ao prender o nó com um grampo. Seus olhos surpreendem os meus no espelho. É tarde demais para desviar o olhar, mas em vez de me censurar ela sorri, encarando nosso reflexo. Franzo levemente as sobrancelhas. Por que ela não me repreendeu?
– Hoje é o dia, afinal – diz ela. – Sim – respondo. – Você está nervosa? Por um momento, encaro meus olhos no espelho.
Hoje é o dia do teste de aptidão que me mostrará a qual das cinco facções eu pertenço. E amanhã, na Cerimônia de Escolha, escolherei uma; escolherei o caminho que vou trilhar pelo resto da minha vida; escolherei se devo ficar com minha família ou abandoná-la.
– Não – digo. – Os testes não precisam mudar nossas escolhas.
– Certo. – Ela sorri. – Vamos tomar o café da manhã. – Obrigada. Por cortar meu cabelo. Ela beija meu rosto e desliza o painel sobre o espelho.
Acredito que minha mãe poderia ter sido linda em um mundo diferente. Seu corpo é magro sob o manto cinza. As maçãs de seu rosto são salientes e seus cílios são longos, e, quando ela solta o cabelo à noite, ele cai ondulante sobre seus ombros. Mas, como integrante da Abnegação, ela é obrigada a esconder sua beleza.
Andamos juntas até a cozinha. Nas manhãs em que meu irmão prepara o café, a mão de meu pai acaricia meus cabelos enquanto ele lê o jornal e minha mãe cantarola ao limpar a mesa – é justamente nessas manhãs que eu me sinto mais culpada por querer deixá-los.
O ônibus fede a fumaça. Cada vez que passa sobre um trecho irregular de asfalto, sacode-me de um lado para o outro, mesmo que eu esteja apoiada no banco para me manter parada.
Meu irmão mais velho, Caleb, está em pé no corre- dor, segurando a barra de metal acima de sua cabeça para manter-se firme. Não somos parecidos. Ele tem o cabelo escuro e o nariz curvado do meu pai, e os olhos verdes e covinhas nas bochechas da minha mãe. Quando era mais novo, esse conjunto de traços parecia estranho, mas agora lhe cai bem. Se não fosse um membro da Abnegação, tenho certeza de que as meninas da escola reparariam nele.
Também herdou o talento da minha mãe para o altruís- mo. Ofereceu seu assento no ônibus sem hesitar a um rabugento membro da Franqueza.
O homem veste um terno preto e uma gravata branca: o uniforme padrão da Franqueza. Sua facção valoriza a honestidade e enxerga a verdade em branco e preto. Por isso se vestem assim.
Os intervalos entre os prédios diminuem e as estra- das ficam mais regulares à medida que nos aproximamos do centro da cidade. O edifício que um dia foi chamado de Sears Tower, e que hoje chamamos de Eixo, surge em meio à névoa, como uma pilastra escura no horizonte. O ônibus passa sob os trilhos elevados. Nunca entrei em um trem, embora eles nunca parem de circular e haja trilhos por toda a parte. Apenas os integrantes da Audácia andam de trem.
Há cinco anos, pedreiros voluntários da Abnegação restauraram algumas das ruas. Começaram os consertos pelo centro e seguiram em direção aos limites da cidade, até que seus materiais se esgotaram. As ruas da região onde moro ainda são rachadas e desiguais e não é seguro dirigir por elas. Mas isso não importa, porque nós não temos carro.
A expressão de Caleb permanece tranquila enquanto o ônibus treme, balança e arranca pela estrada. Com o manto cinza dependurado em seu braço, ele segura a barra de ferro para manter o equilíbrio. Percebo pelos movimentos constantes de seus olhos que está observando as pessoas ao redor, esforçando-se para enxergar apenas elas, e não a si mesmo. A facção da Franqueza valoriza a honestidade, mas a nossa facção, a Abnegação, valoriza o altruísmo.
O ônibus para em frente à escola e eu me levanto, espre- mendo-me para passar entre o integrante da Franqueza e o banco da frente. Ao tropeçar sobre os sapatos do homem, me apoio na mão de Caleb. Minhas calças são longas demais e eu nunca fui muito graciosa.
O edifício dos Níveis Superiores abriga a mais antiga das três escolas da cidade: Níveis Inferiores, Níveis Medianos e Níveis Superiores. Como todas as outras cons- truções ao redor, ele é feito de vidro e aço. Há uma enorme escultura de metal em frente ao edifício que os integrantes da Audácia costumam escalar depois das aulas, desafiando uns aos outros a subir cada vez mais alto. No ano passado, vi uma das integrantes cair e quebrar a perna. Fui eu que corri para chamar a enfermeira.
– Testes de aptidão hoje – digo. Caleb não é nem um ano mais velho que eu, então somos da mesma série.
Ele acena com a cabeça ao atravessarmos a porta de entrada. Meus músculos contraem-se quando entramos no prédio. Há um clima de fome no ar, como se cada aluno de dezesseis anos estivesse tentando devorar o máximo possível deste dia. É bem provável que não caminhe- mos mais por estes corredores depois da Cerimônia de Escolha. Quando escolhermos nossas novas facções, elas se encarregarão de nos oferecer o restante dos nossos estudos.
Nossas aulas hoje durarão metade do tempo, para que possamos assistir a todas antes do teste de aptidão, que ocorrerá depois do almoço. Meu coração já está acelerado, só de pensar.
– Você não está nem um pouco preocupado com o que ele pode revelar? – pergunto a Caleb.
Paramos na bifurcação do corredor, de onde ele seguirá em uma direção, para a aula de Matemática Avançada, e eu em outra, para a aula de História das Facções.
Ele franze sua testa ao olhar para mim. – Você está?
Poderia dizer-lhe que tenho me preocupado há sema- nas a respeito do que o teste de aptidão vai me revelar: Abnegação, Franqueza, Erudição, Amizade ou Audácia?
No entanto, apenas sorrio e digo: – Não muito. Ele sorri de volta. – Bem... tenha um bom dia.
Sigo para a aula de História das Facções, mordendo o lábio inferior. Ele não respondeu minha pergunta.
Os corredores são estreitos, embora a luz que entra pelas janelas crie a ilusão de espaço, e são um dos poucos lugares em que pessoas da nossa idade e de facções dife- rentes se misturam. Hoje, os estudantes apresentam uma energia diferente, uma sensação de último dia.
Uma menina de cabelos longos e encaracolados grita “ei!” perto do meu ouvido, acenando para um amigo dis- tante. Uma manga de jaqueta esbarra na minha cara. De repente, um garoto da Erudição vestindo um casaco azul me empurra. Perco o equilíbrio e bato no chão com força.
– Sai da frente, Careta – diz ele rispidamente, e segue pelo corredor.
Meu rosto esquenta. Levanto-me e me ajeito. Algumas pessoas pararam quando eu caí, mas nenhuma ofereceu ajuda. Seus olhares apenas me acompanham até o final do corredor. Esse tipo de coisa tem acontecido com outros integrantes da minha facção há meses. Os membros da Erudição têm divulgado relatórios antagônicos em rela- ção à Abnegação, e isso tem afetado nosso relacionamento na escola. As roupas cinza, o corte de cabelo simples e o comportamento modesto da nossa facção deveriam me ajudar a esquecer de mim mesma e fazer com que as outras pessoas se esquecessem de mim também. Mas agora eles fazem de mim um alvo.
Paro em frente a uma janela da Ala E e espero a che- gada dos membros da Audácia. Faço isso todas as manhãs. Às 7h25 em ponto, eles provam sua coragem ao pular de um trem em movimento.
Meu pai chama os integrantes da Audácia de “endia- brados”. Eles têm piercings, tatuagens e usam roupas es- curas. Sua principal função é proteger a grade que cir- cunda nossa cidade. Proteger de quê, eu não sei.
Eles deveriam me deixar chocada. Eu deveria me perguntar o que a coragem, que é a virtude que mais valo- rizam, tem a ver com um anel de metal pendurado no nariz. No entanto, sigo-os com os olhos por onde quer que andem.
O apito do trem toca alto e o som ressoa em meu peito. O farol do trem pisca enquanto a composição se desloca violentamente e passa em frente à escola, com suas rodas rangendo contra os trilhos de metal. Ao passarem os últi- mos vagões, uma quantidade enorme de jovens com roupas escuras se atira do trem em movimento, alguns caindo e rolando no chão, outros pisando em falso por um momento antes de recobrarem o equilíbrio. Um dos garotos coloca o braço em volta dos ombros de uma menina, rindo.
Assisti-los é uma atividade vã. Desvio o olhar da janela e atravesso a multidão até a sala de História das Facções.

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